O BRASIL E OS CASOS INTERNACIONAIS SOBRE VIOLÊNCIA DE GÊNERO
- vitoria fachin
- 15 de nov. de 2024
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Atualizado: 18 de nov. de 2024

Vitória Fachin
15 de novembro de 2024
O Brasil internalizou diversos tratados de Direitos Humanos se responsabilizando perante a comunidade internacional. A internalização desses tratados – seja pelo procedimento do art. 5º, §3º, da Constituição da República 1, que garante status de Emenda à Constituição, seja com status de norma supralegal, conforme jurisprudência do STF, capitaneada pelo voto do Ministro Gilmar Mendes, no precedente histórico sobre a prisão civil do depositário infiel 2 –, permite a responsabilização do Brasil na esfera internacional, em caso de descumprimento das normas sobre Direitos Humanos.
O Brasil, até a presente data, foi condenado 14 vezes pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH). Para além dos casos com sentença prolatada, existem casos que há solução consensual perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), bem como pedidos de medidas cautelares perante a Corte IDH.
No que tange ao sistema global, o Brasil foi acionado por violações aos tratados de Direitos Humanos apenas 2 vezes, uma no Comitê de Direitos Humanos da ONU – órgão que fiscaliza o cumprimento do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos pelos Estados-partes 3 – e outra no Comitê CEDAW – órgão que monitora o cumprimento da Convenção para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher pelos Estados-partes 4.
Diante disso, serão analisados no presente artigo os casos envolvendo violência de gênero em que o Brasil foi parte perante o sistema interamericano e o sistema global.
Casos no Sistema Interamericano:
No sistema interamericano os casos envolvendo violência de gênero decorrem da aplicação tanto da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) 5, bem como da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção Belém do Pará) 6.
1. Caso Maria da Penha vs. Brasil
O primeiro e mais emblemático é o Caso Maria da Penha vs. Brasil solucionado perante a CIDH. E foi a partir desse caso que a Lei 11.340/06 7 foi publicada, também conhecida como Lei Maria da Penha.
A CIDH recebeu a denúncia em 20 de agosto de 1998, na qual o Brasil foi denunciado pela falta de investigação e punição das violências perpetradas pelo então marido da vítima durante os anos de casamento, violências essas cometidas no âmbito doméstico, que culminaram em tentativa de homicídio e paraplegia. Maria da Penha sofreu violência doméstica durante 15 anos, mesmo havendo denunciado por diversas vezes seu então marido 8.
Nesse sentido, a CIDH, no Relatório 54/01, concluiu que o Brasil violou os seguintes direitos Ibid: violações dos direitos e deveres estabelecidos nos artigos 1 (Obrigação de respeitar os direitos), 8 (Garantias judiciais), 24 (Igualdade perante a lei) e 25 (Proteção judicial) da Convenção Americana, em relação aos artigos II e XVIII da Declaração Americana, bem como no artigo 7 da Convenção de Belém do Pará.
Ainda, a CIDH constatou que o Brasil, à época, apesar de ter tomado algumas medidas para solucionar o problema da violência de gênero, apresentava grau de tolerância para com a violência doméstica, considerando a inatividade policial e judicial com relação a esses crimes Ibid.
Com isso, foram apresentados ao Brasil algumas recomendações como, por exemplo Ibid: dar andamento aos processos de investigação e punição, observando a duração razoável do processo; adotar medidas de reparação simbólica e material à vítima; estabelecer políticas públicas para o enfrentamento da violência doméstica contra as mulheres.
A partir da análise desse caso é possível perceber que foram necessários anos de violências e sofrimento de Maria da Penha, bem como diversas outras mulheres, para que o Brasil iniciasse um processo de enfrentamento da violência doméstica no país. Todavia, apesar de a Lei 11.340/06 já estar vigente há 18 anos a violência doméstica continua sendo um tema alarmante, conforme constatado pela própria Maria da penha que requereu à CIDH que continuasse dando seguimento às recomendações ao Brasil 9.
Por fim, é válido mencionar que Maria da Penha escreveu o livro “Sobrevivi ... posso contar” 10, onde conta sua história de luta por justiça e sobre o processo contra Marco Antônio.
2. Caso Márcia Barbosa de Souza vs. Brasil
O Brasil foi condenado pela Corte IDH, no dia 07 de setembro de 2021, pelo homicídio de Márcia Barbosa de Souza, ocorrido no ano de 1998 e perpetrado pelo então deputado estadual da Paraíba, Aércio Pereira. O Caso Márcia Barbosa de Souza envolve a impunidade nas investigações e punição do autor do crime; violação da duração razoável das investigações e do processo, visto que as investigações tramitaram por mais de 9 anos; denegação de justiça; omissão investigatória e uso inadequado da imunidade parlamentar pelo autor do crime 11.
A Corte IDH, na sentença, constatou que o problema da violência de gênero no Brasil é estrutural e generalizado, principalmente, com relação às mulheres afrodescendentes. Ainda, constatou que à época dos fatos havia uma cultura de tolerância para com a violência doméstica e de gênero no país, que se expressava pelo grande número de feminicídios Ibid:
47. A violência contra as mulheres no Brasil era, na data dos fatos do presente caso —e continua sendo na atualidade— um problema estrutural e generalizado.
48. Ademais, existia uma cultura de tolerância à violência contra a mulher, ilustrada, por exemplo, pela forma através da qual os meios de comunicação apresentavam as notícias de violência contra as mulheres, ao romantizá-la ao invés de rejeitá-la.42 A este respeito, foi reconhecido que um alto nível de tolerância à violência contra a mulher está normalmente associado, e em alguns casos produz, altas taxas de feminicídio.
189. (...) as mulheres no Brasil, especialmente as mulheres afrodescendentes e pobres, continuam imersas em um contexto de discriminação e violência estrutural.
Nesse sentido, verifica-se que a Corte IDH realizou um recorte interseccional da violência de gênero no país. Assim, Márcia Barbosa de Souza estava entre as mulheres que tinham maior risco de serem violentadas no Brasil, pois era uma mulher negra, jovem e pobre.
Neste contexto, a Corte IDH declarou o Brasil responsável pela violação dos seguintes direitos, conforme ponto resolutivo 230.3 e 4, da sentença Ibid: direitos às garantias judiciais, à igualdade perante a lei e à proteção judicial, contidos nos artigos 8.1, 24 e 25 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação às obrigações de respeitar e garantir os direitos sem discriminação e ao dever de adotar disposições de direito interno, estabelecidos nos artigos 1.1 e 2 do mesmo instrumento, e em relação às obrigações previstas no artigo 7.b da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e violação do direito à integridade pessoal, reconhecido no artigo 5.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação ao artigo 1.1 do mesmo instrumento.
Ademais, a Corte IDH apresentou algumas determinações de implementação de políticas públicas ao Brasil como, por exemplo: implementar um sistema nacional de dados que permitam a verificação dos índices de violência contra a mulher no país; criar um plano de capacitação com perspectiva de gênero e raça direcionado às forças policiais e operadores de justiça do Estado da Paraíba; adotar um protocolo nacional para investigação dos feminicídios (ponto resolutivo 230 da sentença) Ibid.
Por fim, é necessário constar que o recorte de gênero, raça e classe realizado pela Corte IDH, na sentença, é muito importante, pois conforme demonstrado pelo IPEA 12 o risco de uma mulher negra sofrer violência letal é 1,8% maior do que uma mulher não negra e em 2023 as mulheres negras representaram 67,4% do total de mulheres vítimas de homicídios no Brasil.
No sistema global:
1. Caso Alyne Pimentel vs. Brasil
O Caso Alyne Pimentel está relacionado com violência obstétrica e de gênero, em que também há um recorte interseccional de raça e classe. O presente caso é emblemático, pois representa a primeira vez em que um órgão internacional responsabilizou um país pela mortalidade materna, em decorrência de omissão 13, bem como foi a primeira vez que o Brasil foi responsabilizado no sistema global.
O presente caso ocorreu no ano de 2002, quando Alyne Pimentel, mulher negra e pobre, estava grávida, já no sexto mês de gestação e compareceu a uma maternidade, na cidade do Rio de Janeiro. Ela apresentava sintomas fortes, mas, foi liberada 14.
Ocorre que, os sintomas persistiram e Alyne Pimentel retornou à maternidade, onde foi verificado que o feto havia falecido. Ademais, seu quadro de saúde piorou, apresentando hemorragias, que duraram 24 horas, período em que ela aguardava sua transferência para um hospital público Ibid.
Alyne Pimentel foi transferida para um hospital público e no local registraram sua gravidez como de alto risco. Todavia, precisou aguardar durante 8 horas no corredor do hospital, vindo a falecer sem ter sido atendida Ibid.
À vista disso, o Comitê CEDAW condenou o Brasil, no ano de 2011, responsabilizando o país pela proteção insuficiente de diversos direitos como direito à vida, à saúde, bem como vedação à discriminação do direito à assistência médica Ibid.
Por fim, o Comitê CEDAW trouxe uma importante ponderação a respeito da responsabilidade do Estado pela falta de fiscalização de instituições privadas 13:
3.1 Quando os Estados são legalmente obrigados a prover acesso universal à saúde, eles se tornam diretamente responsáveis pelo monitoramento e regulamentação de instituições de privadas que forneçam serviços de saúde concessionados, tornando-se responsáveis por suas ações.
Posto isso, verifica-se pela análise dos casos apresentados que o Brasil enfrenta um problema de violência estrutural de gênero, que deve ser visualizada de modo interseccional, ou seja, analisando gênero, raça e classe, para que seja possível o enfrentamento efetivo da desigualdade de gênero no país.
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Referências:
14 PAIVA, Caio. HEEMANN, Thimotie Aragon. Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos. 3ª ed. Belo Horizonte: CEI, 2020, pg 670-671
Vitória Fachin:
É Advogada, sócia fundadora do Escritório “Vitória Fachin: Advocacia e Consultoria Especializadas”; é especialista em Gestão Tributária pela USP/Esalq; está cursando Pós-Graduação em Direito Médico na Ebradi e é Coordenadora Jurídica e integrante da Diretoria, de forma voluntária, do Lar para Idosos Irmã Tereza (LAIITE), em Pedro Leopoldo/MG.




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